quarta-feira, maio 23, 2007

Do direito à tendência
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A verdade é que sou um sacana tendencioso. Tento evitar sê-lo nas coisas importantes, mas nas outras deixo-me ir. O direito à tendência não é mais que o direito à diversão, à escolha arbitrária alegremente irresponsável, à declaração de perfeição não sustentada em qualquer raciocínio crítico. O direito à tendência é, no fundo, uma forma de amor, uma maneira de estar apaixonado e de decretar que o mundo devia ser como nos apetece que ele seja, e que se danem as consequências.
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Posso portanto dizer, sem medo de ser mal interpretado, que estou apaixonado por Philip Roth. Das literaturas que conheço, acho que a literatura escrita em inglês é a mais interessante e uma das que melhores escritores nos tem proporcionado, o que, se pensarmos bem, é como dizer que a literatura escrita em grego é uma das mais interessante da Antiguidade: o inglês é uma língua falada por praticamente qualquer pessoa civilizada nos quatro cantos do mundo, funciona como o latim na Idade Média e o grego na época pré-imperial romana, terá provavelmente o maior número de escritores vivos e é aquela que chega a um maior número de leitores. Juntando a demografia à lei das probabilidades chegaremos rapidamente à conclusão que não é anormal que, no mundo ocidental, se considere que alguns dos melhores escritores do Mundo publiquem em inglês (a demografia e a lei das probabilidades não explicam a situação da China. Aparentemente, ou estes dois elementos não são explicação suficiente ou eu sou um ignorante nestas matérias - provavelmente as duas, mas garantidamente a segunda. A Índia, essa, tem muitos bons escritores... em inglês.)
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Das várias literaturas escritas em inglês considero que as três melhores são, por esta ordem, a americana, a inglesa e a indiana (mais uma vez, demografia e probabilidades). E não tenho grandes dúvidas em afirmar que Philip Roth é, com elevado grau de probabilidade, o melhor escritor americano vivo. A demonstrá-lo está o facto de ser o único americano que recebeu o National Book Award em duas ocasiões, a única pessoa que já venceu todos os principais prémios americanos existentes (o Pulitzer, o National Book Award e o Pen/Faulkner), o primeiro indivíduo a ganhar o Pen/Faulkner três vezes (o último dos quais este ano, quando também ganhou o primeiro Pen/Saul Bellow alguma vez atribuido), e o primeiro (e até agora único) escritor a vencer o Booker International.
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Abandonando o campo da estatística e dos prémios, tão árido e sem genuina relevância artística, a minha primeira leitura de "The Human Stain" (por mim assinalada neste post bastante mal escrito) e de "American Pastoral" foram das grandes experiências estéticas da minha vida. Em "Everyman" as minhas expectativas já eram muito altas, mas a satisfação não diminuiu por isso.
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A Philip Roth só falta uma honra. Não precisa dela para o descobrirmos como escritor (tornou-se rico e famoso graças à escrita), não precisa dela para ser protegido de ninguém (é americano) e a sua atribuição não permitiria homenagear qualquer lingua menos divulgada ou defender qualquer fim políticamente correcto (mais uma vez, é americano). O que quer dizer que nunca ganhará o Nobel, o que a meu ver será uma injustiça ao nível da sua não atribuição a Jorge Luis Borges (que teria sido um dos seus mais dignos vencedores).
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Mas, como tendencioso apaixonado que sou, quero que Roth ganhe o Nobel (mesmo que ele não ache isso minimamente relevante). Acho que ele merece, e mesmo que ele não mereça acho que devia ganhar. E por isso vou começar a ver a atribuição do Nobel da Literatura como vejo um jogo de futebol: quero que a minha equipa ganhe, canto por ela, insulto (a maior parte) dos seus adversários. Não me importo que alguns adversários meritórios ganhem, como o Porto ganhou o campeonato (e como seria o caso se Salman Rushdie ou Milan Kundera ganhassem), desde que o façam lealmente e sem que o júri recorra a critérios não-literários.
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Façam como eu. Tornem o momento de atribuição do Nobel em mais um momento de pura diversão e parcialidade. Deixem para trás a sensação de stress intelectual que a atribuição do Nobel da Literatura constuma gerar ("quem é este tipo que ganhou? Tenho de lê-lo? Raios, espero que ninguém perceba que não sei nada da literatura do Uzebequistão!"). Esqueçam por uma vez a irrelevância da realidade e convertam-se ao neo-realismo. Escolham Roth.

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