sexta-feira, janeiro 12, 2007

É a lógica do sistema, baby (ou isto não vai ficar mais fácil)

Quando se vive num Sistema de Segurança Social baseado na ideia de contribuição intergeracional, é óbvio que uma pessoa não pode planear a sua reforma livremente. Por exemplo, não se pode optar por trabalhar para ganhar imenso dinheiro até aos 45 anos e depois reformar-mo-nos e viver uma vida calma. Não: temos de trabalhar para garantir que a malta mais velha recebe as reformas a que tem direito. A ideia de livre escolha do projecto de vida dissolve-se numa obrigação comunitária que nos obriga a uma uniformização dos padrões de comportamento.

Note-se que a adopção deste modelo foi uma escolha democrática válida (acho que restringe o âmbito do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, mas isso são outras águas). Mas é uma escolha com consequências. De facto, perante uma estrutura com cada vez menos trabalhadores activos por cada pensionistas, o sistema deixa de funcionar.

Qualquer contrato implica uma cláusula "rebus sic stantitbus" (ou seja, só vigora desde que certas condições se mantenham). E os pressupostos de que as gerações anteriores beneficiaram, a saber:
- uma população jovem e trabalhadora, com poucos beneficiários e muitos contribuidores;
- uma economia em crescimento exponencial na sequência do pós-guerra;
- a inexistência de dívidas prévias da Segurança Social;
- uma esperança média de vida a rondar os sessenta e muitos, setenta e poucos anos,
deixaram de existir.

Agora, perante:
- uma população envelhecida, com um aumento do número de pensionistas em proporção ao número de contribuintes (um facto provocado, em parte, pelo próprio Sistema de Segurança Social);
- uma economia com ritmos de crescimentos lentos e estáveis;
- a existência de uma imensa dívida a ser saldada pela Segurança Social;
- uma esperança de vida a rondar os 80 anos,
os pressupostos do contrato de Segurança Social entre o Estado e os cidadãos deixaram de ser os mesmos. E como tal, o próprio contrato terá de ser alterado - de forma democrática - pelo Estado.

Daí que alterações como esta - a Função pública terá também que trabalhar além dos 65 anos - sejam até muito leves: o pressuposto do Sistema nunca foi que os pensionistas beneficiassem dele para sempre, mas apenas que esses pensionistas viveriam um determinado número de anos na reforma, após o que, de acordo com a média, morreriam. Se o número de anos que cada pessoa passa em média a receber a reforma se altera, mesmo sem alteração das restantes condições, acabariam por ter de ocorrer alterações na Segurança Social, a nível ou do financiamento (que teria de crescer, por via de um aumento das contribuições individuais de cada um ou do aumento dos contribuintes,) ou das pensões (ou com a a redução do seu valor, ou com a sua atribuição a ficar dependente de uma indexação à esperança de vida, ou com o número de anos a benefíciar de pensões a ser estabelecida, ou mesmo com a entrega de uma lump sum no início da reforma) .

A opção de fazer a Função Pública ter de trabalhar para lá dos 65 anos foi (mais) uma opção democrática válida. E até me parece boa (e óbvia). Mas um dos problemas das opções democráticas é que:
- se se aplicam a um contrato, implicam alteração unilateral do contrato pelo Estado, que é uma das partes, com potencial violação das legitimas expectativas da outra parte contratante;
- podem afectar pessoas diferentes daquelas que tomaram (ou participaram, ou escolheram as pessoas que participaram) na tomada da decisão. Isto é particularmente o caso das decisões que impõem custos às gerações futuras, como sucede nas decisões de gerir o Estado com recurso sistemático ao défice e à dívida pública (para além, ou independentemente, dos retornos do capital face ao custo da dívida) ou na decisão de adoptar um modelo de Segurança Social como o actual.

No que se refere a este último caso, há um problema claro de transferências intergeracionais: os benefícios excessivos (no sentido de não comportáveis) recebidos pelas últimas gerações vão ser suportados, sem benefícios equivalentes, pelas gerações seguintes. E, com medidas meramente paliativas (as únicas possíveis no quadro da salvação do "Estado Social", que será talvez a única directriz ideológica da actual maioria), isto apenas vai piorar, lentamente. Daí que notícias como “Sistema de Segurança Social salva até 2035” me façam pensar seriamente em emigrar.

Em suma, neste tipo de decisões democráticas não se pode pedir a participação de parte das pessoas que vão ser afectadas por elas, pela simples razão de que ainda não existem. Mas, a partir de agora, e no espírito do imperativo moral kantiano, devemos pelo menos tentar considerar e proteger os interesses das gerações futuras quando estas tenham de suportar custos de determinada decisão adoptada nos termos de um processo político democrático.

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