quarta-feira, setembro 08, 2004

Comentário ao post, Conceitos de justiça I, de João Miranda, no Blasfémias.

1- a justiça não tem de ser valorativa desde que seja considerada natural. Tal é a construção grega pré-platónica, e a própria fonte da tragédia grega: não há justiça, há nemesis, na medida em que nem sequer há causalidade. O que existe é tão só e apenas um acontecimento natural, derivado da vontade dos deuses. Não há concepção de justiça.

2- Uma vez que se realize a dicotomia regra natural - regra social (Hesíodo, talvez Parménides), o que sucede é que o campo da ciência natural separa-se do conceito de justiça, na medida em que causa e efeito, ou outras regras científicas (ex.: lei da termodinâmica) não são ou deixam de ser injustos.

3- Por outro lado, no campo social, uma vez que as regras sociais tendem a poder ser voluntariamente alteradas, o conceito de justiça passa a relacionar-se com escolhas. Este tipo de escolhas podem ter muitas variáveis, mas o conceito de justiça é valorativo, na medida em que a própria justiça é uma construção social: na natureza, não existe a noção de justiça. Basta ver os múltiplos conceitos de justiça (e a imensidão do seu conteúdo, desde a pureza da raça à igualdade universal) para nos apercebermos disto.

4- Daqui a célebre frase de Rawls de que, tal como a verdade é o objectivo das ciências naturais, a justiça é o valor a seguir pelos sistemas sociais. Resta saber que justiça.

5- O próprio Hayek afirma que as ideias de Rawls não contradizem o seu sistema de pensamento. O que Hayek descreve é um sistema prático, em que conclui pelo valor (sim, valor) superior da liberdade e que, como tal, o próprio conceito de justiça (nunca sendo expressamente discutido) reside essencialmente num anular das injustiças. Paralelamente, defende que essa luta contra a injustiça residirá, por força de leis económicas, na criação de um sistema de regras que se auto-regule, por meio de regras que, ao serem adoptadas, demonstram ser as mais eficientes. Por sua vez, Rawls estabelece um processo essencialmente formal, que permite avaliar, através de uma regra de minimis, da justiça da situação. são abordagens diferentes, e complementares, do mesmo problema. O que não leva a que sejam totalmente congruentes.

6- Em conclusão, a justiça é uma questão de valores. A opção do João Miranda, formalista, implica, apesar disto, uma assunção prévia de valores. A justiça deve ser formalmente imparcial, mas nunca o é substancialmente, já que é uma opção entre valores. Considerar um sistema formal como substancialmente vazio é um erro, uma vez que esquece a dicotomia lei natural - convenção social.A justiça não é uma regra natural, que nos é dada de forma a poder escolher entre valores. Os próprios meios de administrar e catalogar a justiça os critérios de aplicação, são carregados valorativamente.Ou seja, a concepção de justiça do João não é uma regra natural, mas uma concepção social adoptada por algumas pessoas. A sua aparência como natural deriva do facto de não ser uma escolha consciente, mas tal não implica que, uma vez que dela tenhamos consciência, não possamos optar por outra.Por outro lado, a descrição do Luís é criticável exactamente como o João o faz (por descurar outros valores). Mas isso implica a admissão de várias justiças, que é o que o João faz. Se é possível escolher entre várias justiças, a própria concepção do João tem de admitir que a justiça não é a única. De facto, é enformado por uma noção de tolerâcia e igualdade perante os vários valores apresentados a um sistema, e da sua ponderação segundo certos tipos de critério.

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