segunda-feira, novembro 03, 2003

Carissimos:

Venho cumprir o prometido a diversas familias e comentar o ultimo Von Trier.

Vamos por partes:

1- Quem e, e o que faz Lars Von Trier (LvT)? E um dos cineastas maiores do nosso tempo. Um dos fundadores do Dogma95, que propugna um naturalismo metodologico (filmado a mao, sem efeito especiais, e so em cenarios naturais) tendente a uma maior honestidade artistica . O movimento estava, na nossa opiniao, prestes a morrer: o efeito surpresa esgotado, os conteudos sem exigir tal rigor (ou ascetismo,pois e disso que se trata). Mas o homem, do nada, revitaliza-o: e que tal um filme sem cenario? Como reagem os actores se o cenario nao for o habitual, mas inexistir enquanto recriacao naturalistica? Como reagira o publico? Sera a experiencia filmica mais dependente de paisagens visuais ou emocionais? Como o pr�oprio diz, se queremos fazer experiencias, so se pode mudar um factor de cada vez, sob pena de nao compreendermos o que mudou e porque. E eis um novo animo para o Dogma: estender os limites desse naturalismo, experimentando. O Dogma95 recupera a sua natureza experimental.
E preciso dize-lo, o homem e um genio.


2- Como ja disse, apenas um factor variou: a ausencia de cenario. Ja a tematica classica aos grandes filmes de LvT mantem-se: o sofrimento dos bons e ingenuos (personificados por entes femininos com alguma desvantagem em relaçao a comunidade - a estupidez de Breacking the waves , a cegueira de Dancer in the Dark, a confianca inata na bondade das pessoas sob (aparente) pena de morte em Dogville). Nota-se o catolicismo protestante, claramente de pendor estoico, de LvT: a entrega redentora da mae de familia para salvaçao do marido ou dos filhos. A mae de familia como o elemento redentor ( e eu, pessoalmente, gostaria de conhecer a de LvT; deve ser uma senhora e p�ras), aquela que oferece o seu amor sem reservas, que aceita naturalmente o crescente sofrimento que a humanidade provoca ao seu semelhante. Ou seja, Cristos femininos. E, deste ponto de vista, parece-me que a obra maior de LvT continua a ser Breacking the Waves. Dancer in the dark vale essencialmente por motivos puramente cinefilos: a reinvençao do musical, com a alteraçao dos seus estereotipos de base, mas com o maior respeito pela estrutura formal que este genero sempre apresentou.

3- Finalmente, chegamos a Grace. E a Dogville. E aqui comecam as minhas, enormes, reticencias. Vamos por partes:


a) Quem e Grace? Mais uma personificaçao do ser bondoso, ingenuo, que sofre sem retorquir ate (quase) ao fim. Por acreditar na bondade inata das pessoas, dentro das suas limitaçoes. Devem ser perdoados, mesmo que ela tenha que tudo sofrer (estao a ver um Cristo? Eu vejo uma Paixao, no sentido evangelico do termo). E toda a aldeia, a inicio aparentemente tao boa, se revela inatamente ma. E quem e o primeiro habitante a mostrar que o e? Jason, a crianca (como exemplo mais puro do ser humano ainda nao civilizado). E depois, um a um, toda a aldeia.
Estamos no dominio da Civitate Dei de Santo Agostinho. O Homem e mau. Inatamente. Porque esta manchado pelo pecado, maxime a ganancia (quem nao se lembra do roubo em Dancer in the Dark), o egoismo e pelos impulsos sexuais. E se nos filmes anteriores ainda valia o amor redentor de criaturas ideais, justas, neste nada vale. Grace nao tem nenhuma ligaçao familiar com a aldeia. E dai que nao haja lugar a redencao. Que haja morte: e a tendencia da familia. Como na civitas diabolis agostiniana, apenas os raros justos sao susceptiveis de salvaçao. Neste caso, ainda e mais grave: o unico justo, que merece ser salvo, e o cao que nao se ve, a a criatura ideal que nao existe.

b) A concepçao de LvT quanto ao mecanismo da maldade e tambem, marcadamente, medieval: a economia, cujo fim e o lucro que levara a um aumento do bem-estar da sociedade, e uma via de isolamento do ser humano, que leva que a tudo seja atribuido um valor. Que corresponde a uma contribuicao. Cada vez maior. A maldade e potenciada por um mecanismo individualista defendido pela comunidade, ja que proporciona a libertacao dos piores impulsos humanos. Em ultima analise, leva a escravatura. E a rejeicao da Graca divina quando esta nos e, como foi, entregue. E uma prenda de Deus ao mundo, e nos abusamos dela ate a matar. A economia proporciona isto. O lucro e mal visto aos olhos de Deus. Logo, nao e um qualquer catolicismo. E um catolicismo nao calvinista (embora nisto deva revelar nao possuir certezas quanto a concepcao catolica de LvT).

c) E porque na America? Porque a America e a forma acabada do mercado livre, aberto a todas as exploraçoes daqueles que chegam, buscando a salvaçao. Porque e a terra dos auto-proclamados self-righteous. Porque e a terra que nos reflete a todos, o espelho da civilizaçao ocidental actual, a civilizacao dominante.
O filme faz uma analise semelhante a que Santo Agostinho faz do Imperio Romano e dos vicios que conduziram a sua queda. E nao e por acaso que se situa temporalmente na Grande Depressao. O filme representa o momento da falha maxima do esquema economico acima descrito. Percebo que os americanos se tenham sentido ofendidos, ate pelo fim proposto para a sua civilizaçao. Mas nao concordo com o seu particularismo. Deviamos todos sentir-nos ofendidos. Nao sao so os americanos, mas toda a humanidade que LvT condena e executa sumariamente.

d) Mas LvT tem consciencia do que faz, de si. E "ilustra-se" na figura do pretenso intelectual que ama Grace. Ama-a idealmente. Mas como afirma, nao a entende. E comete um pecado fatal, a omissao. E e ele que no fim a trai. Porque os intelectuais sao tambem humanos, e naturalmente egoistas, levados pelos mesmos impusos diabolicos dos outros. Mas a sua responsabilidade e ate mais grave, porque estao mais perto da Verdade, do Bem, do Belo (sentem-se as ressonancias neo-platonicas). Pelo que merece ser executado pessoalmente. Mesmo arrependendo-se. A sua culpa e a mais grave. E a vergonha que ele sempre sente e uma punicao, mas nunca suficiente. A expiacao tera de ser por eliminacao. Pergunto-me se, coerentemente, LvT terá impulsos suicidas. Mas nao o creio, pois por tras dessa vergonha esta algo muito simples: o medo que vem com o melhor conhecimento do Bem. O intelectual e um cobarde. E por causa disso, merece sofrer o mesmo destino dos outros.


e) por ultimo, a minha opiniao mais polemica. A conversa final entre Grace (o Deus do Novo Testamento)e o seu pai (o Deus do antigo Testamento, que mata a sua vontade, usa de tudo por seu direito divino (Grace dixit) e tenta mesmo matar a filha) � a conversa freudiana que Woody Allen nunca teve coragem de fazer. Mas LvT fa-la. E opta por um Deus cruel, desumano, sem perdao. E uma opcao por um deus anterior, mais primitivo. A maldade nao tem redencao, salvo se Deus o quiser. Porque mercemos todos a morte, mais que quaisquer outros os que recusam e abusam da Graca que Deus tao generosamente verteu sobre nos para nos auxiliar nesta vida tao dificil.
E aqui LvT apercebeu-se de que poderia ser acusado de anti-semitismo. Puro. Que e uma tendencia europeia tao velha como a cristandade (mas que também existe noutros sitios por exemplo, os cristãos evangelicos que defendem os judeus nos E.U.A. sao os mesmos que acreditam que a ocupacao por estes da Terra Santa e um requisito da segunda vinda de Cristo. Que os judeus depois tenham de converter-se ou ser exterminados, e vulgarmente calado...). Ali�a, ainda hoje veio a lume uma sondagem onde se diz que a maioria dos Europeus acredita ser Israel o maior perigo para a paz no mundo. Pesem os ultimos 50 anos de penit�ecia, o anti-semitismo esta ai. Enraizado na psique europeia fundo, e bem fundo. Mantem-se a ideia desse povo explorador, que visa lucrar a custa de povos alheios, convicto da sua superioridade mas arcando com a maior das culpas. Sendo o que mais proximo esteve da Graca divina, merece ser executado pessoalmente.
E LvT, diga-se em seu abono, percebeu este perigo (claro que ninguem assume que isto possa assim ser. Espero uma revoada de criticas, talvez merecidas, a esta opiniao). E salvou o cao. O justo, aquele que so vemos no fim, porque na cidade malefica que Dogville e, apenas ouvimos as suas ressonancias. O Cao Moses. Moises. Isto e que e ter cuidado.

Em sintese: como pode um tal talento e originalidade formal estar tao atreito a uma mentalidade de culpa e expia��o medieval pre-aquiniana?

Um filme a ver, absolutamente, mas a combater, sempre.

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