domingo, maio 21, 2006

Domingo à tarde

O céu está coberto e pesado, e sopra uma ligeiríssima brisa de norte-noroeste, como é aliás habitual. A àgua está escura, nada daquele azul reconfortante, mas sim um verde-lodo vindo das profundezas, misturada com o castanho da areia que as ondas a fecharem levantam. Olha-se para a direita e percebe-se que vai começar a chover em Lisboa, mas que estando-se na Caparica ainda aguentamos mais umas duas horas com tempo seco.

Não que isso interesse a quem esteja dentro de àgua armado com pranchas várias. Ouve-se um silêncio quase reverencial, nada de grupos histéricos e barulhentos, apenas comentários bem dispostos ditos quase em surdina, numa demonstração de concentração e temor pela sacralidade do oceano.

E convém estar-se concentrado, já que o mar está a descarregar microbombas de metro e meio . Podem vir da esquerda ou da direita, escondidas atrás de ondas mais pequenas, fingindo-se inofensivas, ou de peito aberto. Mas são todas pesadas, e tanto podem abrir completamente como fechar e engolir o incauto mais desprevenido ou inexperiente que ou se esqueceu de remar ou resolveu arriscar e meter-se lá dentro.
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Toda a gente cai. Cai como uma criança empurrada na escola pelo puto que estabelece quem manda ali. Nada de muito sério, nada que nos leve a pensar não voltar, mas o suficiente para relembrar quem é a Autoridade ali e que o respeitinho é muito importante.
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Mesmo os mais experientes são relembrados, como às vezes deve acontecer, que se queremos aproveitar os restos do oceano irracional, frio e cruel , temos de seguir as suas regras . Tem de se ter medo. Não muito, não aquele medo que congela os músculos e nos impede de reagir, mas aquele medo que faz subir o nível de adrenalina, melhora os reflexos, queima calorias e nos faz sentir ligeiramente mais vivos.
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Temos de sorrir e arriscar e cair e levantar e incentivar e aproveitar estes momentos em que a mente é só instinto, as preocupações são presas num buraco fundo que se tapa temporariamente, e em que só existem a paz e o medo e a pureza abandonadas no ventre da mãe. Porque é este o momento, o atractor fisico, o ponto zen, em que recordamos a simbiose em que viviamos antes de termos nascido e nos termos começado a preocupar com todas aquelas merdas que nos fizeram esquecer o que interessa, que nos fizeram esquecer de nós próprios. Porque, para quem lá está, é este o momento em que se consegue tocar a memória instintiva de como era ser feliz.