terça-feira, março 18, 2008

Baralha e voltar a dar
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Em Nova York, o 5º maior banco de investimento em Wall Street só não faliu porque a Federal Reserve concedeu uma linha de crédito de 30 mil milhões de dólares à J.P. Morgan para esta o comprar por uma pechincha - por cerca de um décimo do valor do prédio da sua sede, para termos uma ideia. Podemos perguntar-nos se a escolha da J.P. Morgan será uma homenagem ao papel do seu fundador na resolução da crise bancária de 1911 (não é provável), mas não podemos ter dúvidas que o facto de o actual chairman da Fed ser o maior especialista mundial na Grande Depressão dos anos 30 tem algo a ver com a reacção desta à crise.
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Para quem nunca leu Milton Friedman, mais do que a queda da bolsa nas Quinta e Terça Feiras negras, pode considerar-se que a principal razão para a gravidade da Grande Depressão, que poderia ter sido uma mera recessão, se pode encontrar na reticência da Federal Reserve em financiar as instituições financeiras em dificuldades. Então como hoje, uma crise de liquidez pode ser temporária ou definitiva, mas quando ocorre pode levar um banco à falência através de um bank run: as pessoas a quem o banco deve dinheiro entram em pânico e pedem a restituição do seu dinheiro simultaneamente. O banco, que empresta ou investe o dinheiro que é depositado, não tem o dinheiro todo à mão (normalmente só terá o ratio que lhe tiver sido imposto pelo banco central), e ou obtém dinheiro emprestado ou declara falência. Como dizia o grande Keynes: "Quando deves $10.000 ao banco, o problema é teu; quando deves $1.000.000, o problema é do banco."
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Quando bancos grandes, ou muitos bancos, se encontram nesta situação e declaram falência, empresas que sejam credores das instituições falidas, incluindo outros bancos, não só podem perder muito dinheiro como também vêem desaparecer uma potencial fonte de crédito. Isto por si só pode levar, e leva, à falência de empresas e outros bancos; quando conjugado com um pânico generalizado dos depositantes, pode levar à implosão do sistema financeiro, ao desaparecimento de poupanças da população em geral, à evaporação do valor de vários activos e a uma grave crise económica.
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O chairman da Fed está portanto muito ciente disto e tentou matar à nascença a possibilidade de deste ciclo se iniciar. Todavia, o desaparecimento de valor na economia já é, pelo menos desde a crise do subprime, evidente. Esta crise revelou dois problemas sistémicos graves: a existência de uma bolha imobiliária - potencialmente provocada pela política de taxa de juros baixa desenvolvida pelo anterior chairman da Fed, Alan Greenspan - e o falhanço do sistema de atribuição de valor dos activos financeiros.
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Quando os juros são baixos, os agentes económicos têm um maior incentivo a pedir dinheiro emprestado, o que retira dinheiro dos bancos e o faz circular na economia. Isto faz subir o valor dos activos, o que para a maior parte das pessoas quer dizer as suas casas; os bancos querem garantias para os empréstimos, e na maior parte das vezes tais garantias são as próprias casas, valoradas a um valor inflacionado. Assim, caso o preço das casas caia - e nos EUA fala-se numa queda de 10% do valor das casas, e antecipa-se que este valor possa vir a cair ainda outros 20%, - os bancos dão por si a terem emprestado mais dinheiro do que aquele que têm garantido. Se na euforia que antecedeu a crise do subprime se chegou mesmo a emprestar dinheiro a pessoas ou entidades que não oferecem garantias mínimas de pagamento - empréstimos mais arriscados, logo a uma taxa de juro mais elevado - e o património destas pessoas diminuiu de valor, sendo portanto incapazes de pagar as prestações que devem, alguns bancos podem encontrar-se subitamente insolvente e a e a euforia torna-se histeria. Foi o que aconteceu com o subprime.
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Todavia, as entidades que procediam a empréstimos subprime sabiam que o risco de incumprimento era grande, e como tal trataram de passar os riscos para terceiros através dos agora célebres CDOs: instrumentos financeiros derivados que uma instituição financeira emite e que não são mais que contratos em que eu, investidor, compro o CDO por um determinado montante ao banco - que este usa para financiar os empréstimos que venha a fazer - e em troca recebo pagamentos periódicos correspondentes às prestações pagas por aqueles a quem banco tenha emprestado dinheiro. Tais CDOs são emitidos por tranches, ou seja, divididos consoante o risco de incumprimento do pagamento do empréstimo. Quanto maior o risco de incumprimento, maior o juro pago. Por exemplo, a tranche de um CDO relativa a empréstimos subprimes tem um risco maior de não vir a ser paga - o devedor não paga ao banco, o banco não me paga a mim - pelo que eu exijo uma maior taxa de juro para compensar o maior risco que vou incorrer.
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A avaliação destes CDOs era efectuada por empresas de rating, que avaliavam a possibilidade de um CDO poder vir a não proporcionar o pagamento acordado entre mim e o banco. Como quanto melhor o rating menor a taxa de juro que a entidade que emitia o CDO teria de pagar; e como quem escolhia a empresa de rating era a entidade que emitia o CDO; a empresa de rating tinha um incentivo para dar a melhor avaliação possivel aos CDOs que analisava, e para não ser imparcial.
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Esta é apenas uma explicação possivel para a falha do sistema; mas seja como for, veio-se a descobrir que o valor destes instrumentos financeiros era em muitos casos duvidoso, uma situação ainda pior no caso de instrumentos financeiros emitidos por relação a outros instrumentos financeiros. Como tal, o valor concreto de alguns CDOs e de outros instrumentos financeiros é de muito difícil determinação. Isto quer essencialmente dizer que caso eu tenha comprado um CDO, posso muito bem não fazer ideia de qual o seu valor concreto ou de qual o valor do activo subjacente.
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Para parafrasear Keynes, caso fosse só eu, o problema era meu; mas quando ninguém saber qual o valor dos activos que detém, o problema é do sistema. Não sabendo o valor dos activos que detêm ou que pretendem vir a deter, os investidores tornam-se mais cautelosos e não investem; generaliza-se a desconfiança quanto a entidades que detenham instrumentos financeiros, já que se conclui que não se consegue avaliar qual o valor e a viabilidade destas entidades. E como, claro, não há ninguém que não detenha instrumentos financeiros de valor duvidoso, toda a gente desconfia de toda a gente.
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Em última análise, eu investidor acho que há possibilidade de os meus instrumentos financeiros não terem valor; e acho também que se alguém também chegar à mesma conclusão esse alguém vai tentar vender os seus instrumentos financeiros o mais rápido que poder. Como tal, vou eu mesmo tentar vendê-los antes de toda a gente, ou pelo menos tão depressa quanto possivel. Se toda a gente chegar à mesma conclusão que eu, temos o pânico: toda a gente tenta livrar-se dos seus instrumentos financeiros tão depressa quanto possivel e o preço de mercado destes diminui abruptamente, independentemente do seu valor intrínseco. É isto que tem acontecido em diversos sectores - subprime, alguns hedge funds, monoline insurers.
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Para mais, na sequência da abolição do Glass-Steagall Act em 1999 - uma lei que estabeleceu no tempo da Grande Depressão uma divisão entre bancos comercais e bancos de investimento - muitos bancos comerciais possuem agora um elevado número destes instrumentos financeiros. Ora, se um banco não tem confiança no valor dos activos de outro banco, não lhe vai emprestar dinheiro; e se os credores desse banco chegarem à mesma conclusão, vão tentar mais uma vez recuperar o seu dinheiro antes de todos os outros, gerando um bank run - como alías ocorreu no caso do Northern Rock, no Reino Unido. Se este padrão se tornar generalizado, temos um regresso ao ciclo da Grande Depressão.
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Daí que os reguladores em todo o mundo, e particularmente a Fed, tenham baixado as taxas de juro - para incentivar o crédito, incluindo o interbancário-, injectado dinheiro no mercado e tentado impedir a falência de bancos com uma certa dimensão.
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Todavia, não é claro quais os efeitos destas intervenções. A baixa das taxas de juro e a injecção de liquidez tende a gerar inflacção; isto numa altura em que os preços das matérias-primas (petróleo, ouro, mesmo carne e leite) têm disparado, talvez de forma permanente, devido ao aumento de procura nos países em vias de desenvolvimento. Este aumento de preços, por si só, geraria já o aumento do valor da inflacção. Se a crise bancária gerar uma recessão, e a inflacção disparar, teremos um fenómeno de estagflação, que é dificilmente reversível, como a crise dos anos 70 demonstrou.
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Por outro lado, o impedimento da falência de instituições cria risco moral, já que os gestores de tais instituições terão a tentação de arriscar ainda mais na convicção de que se encontrarem problemas os reguladores os salvarão. Em última análise, ao evitar uma crise agora podemos estar apenas a aumentar a dimensão de crises no futuro.
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É tudo menos claro como é que estaremos dentro de 6 meses, mas pelo menos uma coisa devia ser óbvia: para o ano deveriamos ter um Democrata na Casa Branca. De facto, estamos perante uma tempestade perfeita para os Republicanos: um presidente a terminar o segundo mandato consecutivo (desde a II Guerra Mundial apenas uma vez um partido manteve a presidência mais de dois mandatos consecutivos, e foi de Reagan para Bush pai, no meio de uma bonança económica e da vitória na Guerra Fria); um candidato republicano que apoia ferozmente uma guerra impopular e arca com o peso de um presidente do mesmo partido com a popularidade na casa dos 30% há dois anos; as sondagens a indicarem que, genericamente, um democrata derrotaria um republicano por cerca de 15%; um entusiasmo democrata, patente nos fundos angariados pelos seus candidatos, em directa proporção ao seu ódio por George W. Bush; e a tudo isto se soma agora uma aparente recessão económica que será naturalmente imputada aos republicanos no poder.
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Sucede que o candidato republicano já foi escolhido enquanto parece que os democratas se vão matar um ao outro até dois meses antes das eleições (ninguém venceu uma eleição moderna nestas condições); que o candidato republicano tem uma taxa de aprovação de mais de 60% (muito superior à de qualquer candidato democrata); que o candidato republicano aparece na maioria das sondagens a vencer em alguns dos maiores battleground states, contra todas as previsões; que o candidato republicano está tecnicamente empatado, e agora a liderar, nas sondagens nacionais contra qualquer um dos candidatos democratas; e que, a acreditar numa sondagem, ontem pela primeira vez em quase 3 anos uma maioria de americanos pareceu acreditar na vitória no Iraque.
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Os EUA estão imprevisiveis, e por arrasto o resto do mundo. E reparem que já nem faço menção à possibilidade de qualquer atentado num futuro próximo, ou a outros países. Parafraseando a célebre maldição chinesa, vivemos tempos interessantes.

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